Por Cristiano Gomes e Pedro de Grammont
Mostra de Bonecos: O aspecto criativo. Como você chegou nesse campo primitivo da obra de bonecos construídos com cabaça?
CN: A cabaça é um material o qual eu sempre tive familiaridade com ele. Nasci e cresci na Argentina, onde as cuias que se usa pra tomar chimarrão são feitas de cabaça. Quando eu mudei para o Brasil - morei uns seis anos no Espírito Santo - eu comecei a experimentar de construir instrumentos com cabaças e, no início a idéia era de construir instrumentos musicais, mas aí a viagem estética pesou muito mais. Partindo disso, comecei a fabricar uns objetos que eram instrumentos musicais e, também, decorativos. Mas quando eu comecei a fazer o “Que Bicho Será” - montagem que deu origem aos bonecos da minissérie “Hoje é dia de Maria” - os bonecos do espetáculo já existam, e aí o Luiz Fernando Carvalho pediu pra utilizar estes bonecos. Eu preferi fazer uma réplica do meu trabalho pra que pudéssemos gravar na Globo.
O material que eu uso no “Que Bicho Será”, basicamente é cabaça, pois o enredo se baseia em cinco contos de Ângelo Machado que estão situados dentro de um sítio. Então esse sítio tem uma relação com as idéias terra, grama, feno, folhas, madeira, fogo, esteiras, ferramentas de capinar, martelo, serrote. As cores que utilizo são azul marinho, verde oliva e, principalmente, tons pastéis. Eu não uso o fundo preto como uso em outros espetáculos. E todas as cores e formas em contraposição com a cabaça. Amarelada, ocre como a que se vê nos bonecos. Isso compõe, gera um sentido mais orgânico na obra. Este material não se funde com o que está no fundo do palco. Contrapõe a cor, mas não agride uma coisa à outra. As esteiras que a gente usa (as tapadeiras de fundo do espetáculo “Que bicho será”) são de bambu, tratadas com betume. Os figurinos são aventais, uma camisa de manga comprida e umas luvas cortadas na ponta para dar mais sensibilidade para manipular. E usamos uns capuzes meio medievais, então a idéia era como se fosse um marceneiro, um carpinteiro medieval com um avental mais moderno.
A personagem narradora do “Que bicho será” – personagem criada para os contos, para a versão adaptada para teatro de bonecos – Chico do Chapéu, é uma personagem que veste chita, algodão, e usa um chapéu de cabaça com uns dispositivos cheios de componentes eletrônicos. Com essa cabaça, ele está conectado ao mundo e é através dos mesmos componentes que ele consegue contar tais histórias maravilhosas para as pessoas. E ele argumenta que não empresta o chapéu para ninguém, por nada. No fim do espetáculo, a justificativa da personagem é que, sem o chapéu, ele não conseguiria contar essas histórias magníficas com essa conexão assim, vamos dizer, com o universo é que ele consegue contar as histórias. Tudo isto, através da matéria orgânica da cabaça.
Acabou que esse trabalho, antes de ir pra estréia, acabou alavancando outra produção, que é a fantástica – um marco de referência de qualidade dentro da produção da Globo – “Hoje é dia de Maria”. Os patos, a estética dos patos, a mecânica desenvolvida para isso, a cor deles – tudo isso acaba caindo na mão de alguém interessante, inteligente e competente como o (Luiz) Fernando Carvalho, e aí ele começa a achar que a única brincadeira possível para a vida de uma menina extremamente sofrida era brincar com os patinhos. E isso cai em todas as chamadas da minissérie, e ganha uma mídia violenta que, infelizmente acabou gerando problemas porque este trabalho foi ao ar com o nome de um outro grupo que se deu à autoria deste trabalho, e que acabou criando um impasse judicial. Na segunda minissérie, o primeiro de todos os créditos da minissérie era o meu. Mas, na primeira, o meu nome, infelizmente não foi ao ar. E a gente às vezes sofre um pouco ainda, anos depois de ter feito esta minissérie, com pessoas que chegam, batem o olho e dizem: “Olha aqui este boneco de fulano!”. Aí depois este mesmo ser começa a olhar as outras produções e pensa: “mas, espera aí, se está aqui um trabalho de “fulano”... Este trabalho foi você que fez?”. E aí eu digo que sim, este trabalho foi de minha autoria.
Então eu dei toda essa volta para te contar uma história que está ligada à minha infância, ao fato de eu ter crescido segurando uma cuia de chimarrão quente em um lugar frio, sabe? Um material que, quando eu vim ao Brasil, comecei a ver novas formas – as cuias que vemos na Argentina são mais ou menos parecidas – aqui tem umas formas retorcidas (motivo para gerar, por exemplo, os bicos dos patos da minissérie. Acho que, pelo próprio livro que o Machado colocou na minha mão, acabou sendo uma pesquisa. Tem uma coisa que é interessante, que eu já queria muito trabalhar com as cabaças. Eu já tinha pesquisado o material, já tinha trabalhado com ele, já dominava ele. Quando chegou a vez de “Que Bicho Será” eu pensei em ainda fazê-lo com outro material. Só que eu estava em contato com outro artista plástico de Belo Horizonte, o Gabriel Bicalho. Aí eu peguei um de meus pintinhos que tinham sido, assim, provavelmente, a primeira ou segunda obra que eu fiz. E eu queria esconder algumas articulações com papel. O Gabriel – que é super renomado - olhou meu trabalho e disse assim: “ cara, você vai acabar com o trabalho. Deixe do jeito que está. Está perfeito!”. Eu precisava de um artista plástico, com um outro olhar. Meu olhar é muito mecânico. O boneco tem que ser funcional. Pode ser lindo, maravilhoso! Se não tiver funcionalidade, não vale nada. Mecanicamente estes bonecos ficaram muito bem resolvidos, eles funcionam muito bem.
Mostra de Bonecos: Quando foram construídos?
CN: A construção foi em 2004, o projeto já existia desde 1998. E aí eu fui pesquisando e desenhando coisas soltas. Até que, em 2003 eu comecei a fechar umas ilustrações, comecei a criar. E entre 2003 e 2004 eu criei os bonecos. Foram seis meses interruptos de trabalho. Aí tem um detalhe, a construção. É o seguinte: quando você projeta um boneco, que está pelado, que não tem nada, é uma estrutura. Você desenha e depois visualiza por dentro. Isso implica de você cortar placas de madeira e esculpi-las de dentro.
Quando você parte de um material como a cabaça, que está pronto você pega uma coisa que já está pronta, você remove os pedaços para poder encaixar uma coisa dentro da outra. E ainda tem que funcionar, mecanicamente. Então é uma coisa que eu chamo de “contra projeto”. Porque, quando você projeta, você faz uma construção progressiva e, neste caso, é o contrário. É um contra projeto. Você se adapta à forma que já existe para construir uma coisa em cima da estética que você quer.
Mostra de Bonecos: Você coloca alguma característica sua, da sua personalidade, nos personagens?
CN: Bom, eu acho que sim. Tudo que você vê tem uma questão que é a seguinte. Eu não me baseio na estética de outras pessoas. Eu não copio estéticas. Pesquiso geralmente os movimentos e faço imagens dentro da minha limitação enquanto desenhista. Então, o que você vê, é sempre a minha estética.
Mostra de Bonecos: Uma projeção midiática como é “Hoje é dia de Maria”. Até onde ela dá um fluxo no seu trabalho e até onde ela limita esse fluxo?
CN: A Globo não influenciou em nada no meu trabalho. Quando eu apresento o meu trabalho, as pessoas têm uma referência, e criam uma curiosidade muito maior pelo fato de a Globo ser uma transmissora muito grande, acaba gerando a curiosidade de: “ esse cara já fez, a abertura de uma novela, As Filhas da Mãe, em 2000. Ele fez a minissérie “Hoje é Dia de Maria” em 2005. Ele fez uma novela que se chamava “Sabor da Paixão” em 2003”. Tem um seriado no Futura, que é um vídeo escola que tem minhas marionetes.
Então, eles acabam vendo o que você oferece com outros olhas. Nesse sentido, influencia positivamente. Mas em relação ao meu trabalho, não influencia em nada. Eu achei que, quando fiz “as Filhas da Mãe”, eu estava estourando. Que eu ia, sabe, virar “global” (risos). Ilusão de juventude. Porque aí eu aumentei o preço de espetáculos, fiz um lançamento e acabei não vendendo nada pra mais ninguém. Depois eu abaixei a bola e disse: “não é assim. Isso não vai mudar a minha vida. “Não é uma coisa que resolveu minha vida”. E, analisando todos aqueles que já fizeram algum trabalho para uma emissora “maior”, raríssimas exceções que realmente tiveram a vida mudada depois que se projetaram na TV. Então, não influenciou nada financeiramente.
Quando você trabalha pra Globo você ganha bem, as condições de trabalho são excelentes. Foi muito bom ter trabalhado na Globo porque isso me possibilitou de vivenciar as cidades cenográficas, conviver com os “artistas-globais”, mas sem interferir de forma negativa. São sempre experiências muito boas.